Factorama: http://factorama2.blogspot.com Publicação de divulgação científica em meio eletrônico.
Factorama

Atualizado diariamente - www.factorama.com.br - ISSN: 1808-818X

Tristes trópicos....

domingo, julho 04, 2010 10:56:00 AM




Tristes Trópicos por Maria Rita Kehl

O deputado Aldo Rabelo é um patriota. Anos atrás, criou um projeto de lei contra o uso público de palavras estrangeiras no país. Chapeau! Só não me lembro se a lei não foi aprovada ou não pegou. Somos surpreendidos agora por nova investida patriótica do representante do PC do B: substituir o verde-folha do nosso pendão por um tom mais elegante, o verde-dólar. Nada contra a evolução cromática do símbolo pátrio. Mas o projeto de revisão do código florestal proposto por Rabelo é escandaloso. Ninguém esperava tamanho revisionismo da parte de um velho comunista.

Ou sim? Se o PC do B ainda tem algo a ver com a China, nada mais previsível do que a tentativa de submeter o Brasil à mesma voracidade do país que hoje alia o pior de uma ditadura comunista com o pior do capitalismo predatório: devastação da natureza, salários miseráveis, repressão política e desigualdade.

E nós com isso? Nós, que não somos chineses – por que haveremos de nos submeter aos ditames da concentração de renda no campo que querem nos impingir como se fossem a condição inexorável do desenvolvimento econômico? Não sou economista, mas aprendo alguma coisa com gente do ramo. Sigo o argumento de uma autoridade quase incontestável no Brasil, o ex-ministro do governo FHC e hoje social democrata assumido, Luis Carlos Bresser Pereira. A concentração de terras e a produtividade do agronegócio, bons para enriquecer algumas poucas famílias, não são necessários para o aumento da riqueza ou para sua distribuição no campo. Nem mesmo servem para alimentar os brasileiros. A agricultura familiar, pasmem: emprega mais, paga melhor e produz mais alimentos para o consumo interno do que o agronegócio. Verdade que não rende dólares, nem aos donos do negócio nem aos lobistas do Congresso. Mas alimenta a sociedade.

Vale então perguntar quantos brasileiros precisam perder seus empregos no campo, ser expulsos de seus sítios e confinados em regiões já desertificadas e improdutivas, quantas gerações de filhos de ex-agricultores precisam crescer nas favelas, perto do crime, para produzir um novo rico rural que viaja de jatinho e manda a família anualmente prá Miami. Quanto custa ao país o novo agro-milionário sem visão do país, sem consciência social, sem outra concepção da política senão alimentar lobbies no Congresso e ameaçar os sem-terra acampados perto de suas propriedades?

Meu bisavô Belisário Pena foi um patriota de verdade. Um médico sanitarista que viajou em lombo de burro pelo interior do país para pesquisar e erradicar as principais doenças endêmicas do Brasil no início do século XX. O relato da expedição empreendida por ele e Arthur Neiva pelo norte da Bahia, Pernambuco, sul do Piauí e Goiás, em 1912, virou um livro que eu ganhei do professor Antonio Candido. A pesquisa começa pela descrição do clima, ou seja, da seca, e segue a descrever a “diminuição das águas” no interior. Cito na grafia da época: “Não há duvida de que a água diminue sempre no Brazil Central; o morador das marjens dos grandes rios não percebe o fenômeno, mas o depoimento dos habitantes das proximidades dos pequenos cursos e de coleções d’agua pouco volumosas é unânime em confirmar este fato. De Petrolina até a vila de Paranaguá, não se encontra um único curso perene. O Piauhy, encontramo-lo cortado (com o curso interrompido); o Curimatá, completamente sêco; para citar os maiores (...) Acresce que, em toda a zona, o homem procura apressar por todos os meios a formação do deserto, pela destruição criminosa e estúpida da vejetação”. Os professores Jean Paul Metzger e Thomas Lewinson, no Aliás de domingo passado, acusam a falta de embasamento científico do projeto de Aldo Rabelo. Mas nem precisamos de cientistas para concluir o que meu bisavô constatou em 1912: é evidente a relação entre o desmatamento, a diminuição das águas e a desertificação do interior do país.

O novo código de “reflorestamento” propõe reduzir de 30 para 7,5 metros a extensão obrigatória das matas ciliares nas propriedades rurais. Uma faixa vegetal mais estreita do que uma rua estreita não dá conta de impedir o assoreamento dos rios que ainda não secaram, nem barrar a devastação das cheias na zona da mata. Quem nunca observou, do alto do avião, que todos os rios do Brasil central que não têm matas em volta estão secando? Outra piada é isentar as pequenas propriedades da reserva florestal obrigatória. Se até eu tive essa idéia, imaginem se ninguém mais pensou em dividir grandes fazendas em pequenos lotes “laranjas” para se valer do benefício?

Não sei se por ignorância ou má fé, os defensores do desmatamento alardeiam que essa é uma disputa entre desenvolvimentistas e amantes do “verde”. Mentira. O objeto da disputa é o tempo. O projeto de Rabelo defende os que querem agarrar tudo o que puderem, já. No futuro, ora: seus netos irão estudar e viver no exterior. Do outro lado, os que se preocupam com as gerações que vão continuar vivendo no Brasil quando todo o interior do país se parecer com as regiões mais secas do Nordeste atual – algumas das quais já foram ricas, verdes e férteis, antes de ser desmatadas pela agricultura predatória. Que pelo menos contava, no início do século XX,com o beneplácito da ignorância.

Abaixo carta enviada pelo Deputado Aldo Rebelo:

Cara Maria Rita Kelh

Li com a atenção devida seu artigo Tristes trópicos, publicado em O Estado de S. Paulo de 26/10/2010, com a mesma acuidade que dedicava aos que publicava no semanário Movimento quando era articulista da seção de Cultura e eu um mero distribuidor e propagandista do jornal em Alagoas. Mudou o mundo, mudamos todos, mas eu não mudei tanto – não a ponto de ver impassível uma pessoa que tenta exibir preocupações sociais escrever um artigo recheado de patranhas que, parafraseando sua formação psicanalítica, poderia chamar de histeria textual.

Seus comentários sobre o relatório e o projeto de lei do novo Código Florestal por mim apresentados à Câmara dos Deputados desfilam um rosários de ironias, acusações e conclusões absolutamente infundadas – como a de querer impingir concentração de renda e da propriedade da terra, extinguir empregos e expulsar famílias para favelas e a marginalidade, incentivar o agronegócio e boicotar a reforma agrária, apoiar o desmatamento, a desertificação do território e a redução da água, de mentir ao pôr o debate em termos entre desenvolvimentismo e ambientalismo, de ignorar o bem-estar das futuras gerações, e outros crimes ou impropriedades abjetos.

A questão é: qual a fonte de suas conclusões? Em um texto de 5.765 palavras presumivelmente decorrentes de meu projeto de lei, dedica apenas 217 a propostas que me atribui, e erra virulentamente nas duas remissões: quando afirma que “o novo código de ´reflorestamento` propõe reduzir de 30 para 7,5 metros a extensão obrigatória das matas ciliares nas propriedades rurais”; e ao dizer que “outra piada é isentar as pequenas propriedades da reserva florestal obrigatória.”

A primeira coisa que se pede a um crítico é honestidade intelectual – pois, mesmo que ele ache que seus criticados não a tenham, cabe-lhe honrar o exercício da crítica com ao menos a reprodução literal do que julga estar corrigindo. Ao contrário do que você diz, num típico movimento de seguir o estouro da boiada ao “ouvi dizer”, o projeto que apresentei não reduz as áreas de proteção permanentes dos cursos d´água de 30 metros para 7,5 metros. Leia bem o que está escrito no art. 3.º do projeto: a proteção marginal vai oscilar do mínimo de 15 metros para os cursos d'água de menos de 5 metros de largura, ao máximo de 500 metros para os que tenham largura superior a 600 metros. Os estados poderão aumentar ou reduzir em até 50% essas faixas, desde que respeitem em lei as recomendações do Zoneamento Ecológico Econômico, do Plano de Recursos Hídricos elaborado para a respectiva bacia hidrográfica e “de estudos técnicos específicos de instituição pública especializada.” Ou seja, a possibilidade de aumentar ou diminuir a faixa de proteção leva em conta a diferença dos biomas e ecossistemas, e assim previne o erro da lei atual que abarca a dimensão continental do Brasil e sua diversidade exuberante com números tirados da cartola. E qualquer mudança terá de ser cientificamente justificada.

Considerar como “piada” a isenção de reserva legal nas pequenas propriedades, argumentando que um latifundiário poderá ir ao cartório e subdividir suas terras em glebas de no máximo quatro módulos rurais é, isto sim, uma anedota. Curiosamente, certos críticos chafurdam na distorção de, ao pretensamente atirar no agronegócio, alvejar os pequenos proprietários e produtores rurais que dizem defender, mas sem noção do que eles são e representam para o Brasil. O eixo de meu projeto de lei é a proteção do pequeno agricultor, transformado em delinqüente por um cipoal legislativo que o Estado promulga mas não aplica – sobretudo contra os predadores da natureza. Os pequenos são perseguidos dia a dia. Não importa aos supostos ambientalistas nem aos burocratas do Ibama que eles ponham comida em nossas mesas com um trabalho penoso e mal remunerado. São a imensa maioria no campo: segundo o Censo Agropecuário de 2006, detêm 4,3 milhões dos 5,2 milhões de propriedades rurais do Brasil, ocupando apenas 24,3% da área (ou 80,25 milhões de hectares), observando-se que 2 milhões de imóveis têm menos de 10 hectares.

A esses predadores da natureza é que beneficia meu projeto, desobrigando-os da reserva legal mas obrigando-os a manter qualquer capão ou nesga de capoeira subsistente na propriedade. Se o “gênio do mal” que mora em você já teve a idéia de repartir glebas sucessivamente até o mínimo de quatro módulos rurais, imagine o quanto isso seria difícil: uma propriedade de 1 milhão de hectares na Amazônia teria de ser retalhada em 2.500 lotes de até quatro módulos – isso nos locais onde o módulo maior é de 100 hectares. Só os custos de cartório inviabilizariam tal operação, não fosse a ressalva já antecipada na parte do projeto de lei que trata da manutenção da reserva legal: “Em caso de fracionamento do imóvel rural, a qualquer título, inclusive para assentamentos pelo Programa de Reforma Agrária, será considerada (...) a área do imóvel antes do fracionamento.” Ou seja, o gênio do bem que mora em mim brecou a malvadeza antes de que se pudesse insinuar.

No mais, repasso-lhe a recomendação de Truman Capote, para quem um escritor, mesmo um ficcionista, só deve escrever sobre o que conhece.

Atenciosamente,
Aldo Rebelo
Brasília, 29.06.2010

Abaixo resposta enviada ao Deputado Aldo Rebelo:

Prezado deputado,
peço desculpas por um erro grosseiro em meu artigo: grafei seu sobrenome como Rabelo, não Rebelo. Lamento. Mas meu nome também não é Kelh, é Kehl. Essas coisas acontecem.

Fora isso, continuo a achar que entendi muito bem os pontos que abordei a respeito de seu projeto. Claro, os Governos Estaduais (e não mais o Federal!) terão opção de aumentar ou diminuir a extensão das matas ciliares que protegem rios de até 5 metros de largura. Cabe a nós rezar para que eles não façam como o governador de Sta Catarina. Só não sei em nome de que eles iriam aumentar para 30 metros aquilo que estão autorizados a encolher para 7,5.

Claro também que o interesse maior de seu projeto é defender os pequenos agricultores. Deve ser por isso que quem saiu em sua defesa, na Folha de São Paulo, foi a senadora Katia Abreu.

E claro que custaria muito caro registrar em cartório centenas de pequenas falsas propriedades de um único dono, para contornar a legislação. Eu, certamente, não teria dinheiro para pagar tal maracutaia. Nem o senhor. Mas muita gente tem e sabe que vai lucrar muito mais por conta dessa operação.

Só uma pergunta: o senhor considera que Jean Paul Metzger e Thomas Lewinsohn, os dois professores que escreveram no Aliás de domingo também não sabem do que estão falando?

Atenciosamente, M.Rita Kehl.

Marcadores: , , ,


Copyright © 2003 - 2010 Factorama. Os artigos contidos nesta revista eletrônica são de responsabilidade de seus autores. A reprodução do conteúdo, total ou parcial é permitida, desde que citado o Autor e a fonte, Factorama http://factorama2.blogspot.com. Publicação de divulgação científica em meio eletrônico. Destinada ao debate político, econômico, ambiental e territorial, com atualização diária. Ano 6, Primeira edição em julho de 2003. BLOG é abreviação de weblog. Vem de web, que significa internet, e log, de conectar-se à rede. Qualquer publicação freqüente de informações pode ser considerado um blog.

Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Página Principal - Arquivo Morto do período de 12/2003 até 03/2006
 

A motosserra está de volta!!!

Motosserra

Copyright © 2011 JUGV


Arquivos FACTORAMA



Site Feed Site Feed

Add to Google