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UMA GEOGRAFIA TEORÉTICA

quarta-feira, março 12, 2008 1:15:00 PM

Desde o ponto de vista teórico, a nova geografia se apresentou desde o princípio com uma vontade explícita de ciência positiva que tratava de chegar à explicação científica e à formulação de leis gerais. O vínculo com a filosofia neopositivista foi direto e se produziu, em um primeiro momento, através de Fred K. Schaefer. Nascido em Berlim em 1904, e aluno daquela universidade entre 1928 e 1932, onde adquiriu uma boa formação em estatística, ciência política e filosofia, Schaefer era uma personalidade de profundas convicções e de militância socialista. Por isto, teve que se exilar com a chegada dos nazistas ao poder. Dirigiu-se primeiro à Inglaterra e mais tarde aos Estados Unidos, de onde, depois de ter alguns problemas por suas simpatias esquerdistas, acabou dedicando-se à geografia como docente da Universidade de Iowa. Ali coincidiu com um dos mais proeminentes membros do Círculo de Viena, Gustav Bergmann, com quem logo fez grande amizade, e com quem discutiu os aspectos teóricos de suas pesquisas geográficas científicas.43 Desta forma, através de Schaefer, a concepção científica do Círculo de Viena e do grupo de Berlim foi transmitida, pela primeira vez, à geografia norte-americana, e ainda que, em um primeiro momento possa ter sido mal interpretada,44 ao coincidir com outros estímulos da mesma direção, contribuiu para gerar a poderosa corrente neopositivista da “nova geografia”.
O artigo de Schaefer publicado em 1953, se opôs decididamente, desde uma perspectiva positivista a uma concepção que ele denomina excepcionalista da geografia, que é, em definitivo, a concepção ideográfico-regional mantida por Hettner e, nos Estados Unidos, por Hartshorne. Para Schaefer a consideração da matéria como uma disciplina ideográfica, que centra seu esforço na descrição regional, supõe eliminar o conteúdo científico da geografia. Desde o século XIX, com o avanço das ciências da natureza, “a mera descrição era insuficiente”. Trata-se de realizar a afirmação “explicar os fenômenos que se tem descrito significa sempre reconhecê-los como exemplos de leis”. Dito de outra maneira – assinala – “a ciência não está tão interessada nos temas individuais como os padrões que se apresentam”. No caso da geografia, propõe que seja concebida “como a ciência que se refere à formulação de leis que regem a distribuição espacial de certas características na superfície da Terra”.45 Lentamente, esta concepção da geografia como uma ciência explicativa foi ganhando terreno e deu lugar a posicionamentos decisivos de caráter neopositivista, entre os quais podemos destacar, além da obra citada de Bunge, a rica e sugestiva obra de David Harvey, Explanation in geography (1969).
Explicar e formular leis gerais significa dispor de teorias. Já observamos que este era também um ponto de vista fundamental no positivismo decomonônico.46 Qual o modo de chegar às teorias e de onde se situam estas ao longo do caminho da pesquisa é uma questão debatida que admite, ao menos duas respostas: uma que podemos chamar indutiva e outra dedutiva. A via indutiva parte das observações, as compara e classifica e realiza generalizações que se convertem, ao final, numa teoria explicativa. O caminho codificado já no século XVII por Bacon é aceito como o caminho normal da ciência desde o século XIX. Como já tínhamos visto, foi incorporado também pelo positivismo lógico ainda que formulado em termos de probabilidade.47 Na ciência geográfica o método indutivo tem sido normalmente seguido desde o século XIX, e foi valorizado também pelos geógrafos historicistas.48 Na geografia quantitativa é um caminho também normalmente seguido, e como veremos, muitas regularidades espaciais foram primeiro descobrimentos empíricos, a partir dos quais se tentou chegar a uma teoria explicativa
Mas a incisiva crítica popperiana aos métodos indutivos não deixaria de produzir impacto na teoria da ciência e também na geografia. Aparece refletida, por exemplo, nessa obra básica da nova geografia que é a Theoretical geography (1962) de William Bunge, na qual, de entrada, se afirma que “a teoria é o coração da ciência, porque a teoria científica é a chave do quebra-cabeça da realidade”.49 É esta uma opinião compartilhada por um grande número de geógrafos quantitativos. As raízes desta proposição são diretamente popperianas, ou derivam de filósofos analíticos da ciência com uma forte tendência anti-indutivo. Como exemplo, N. R. Hanson que em sua obra Patterns of discovery (1958) apresentou a observação científica como “uma atividade carregada de teoria”.50 e citando uma frase de Sigwart, aceitou que “existe na natureza mais ordem do que aparece à primeira vista, mas isto não se descobre até que essa ordem seja procurada”.51 Essa frase de Sigwart foi citada em uma importante obra da geografia quantitativa52 e mostra bem a atitude mais correntemente adotada por estes geógrafos: existe uma ordem subjacente ao aparente caos da realidade, mas somente se descobrirá se estivermos imbuídos de teorias.
Se as teorias são a chave da realidade, o objetivo tem de ser a elaboração delas e não a coleta dos dados ou a realização de observações. É das teorias de onde deve-se iniciar, formulando hipóteses que devem ser verificadas mediante a investigação empírica. A mudança tem sido radical: a observação, o trabalho empírico que aparece ao afinal, e não ao início, como acontecia nos métodos indutivos até então dominantes.53
Uma proposta desse tipo havia aparecido já explicitamente formulado na obra de Walter Christaller Die zentralen Orte in süddeutschland (Os lugares centrais na Alemanha meridional, 1933) que não por casualidade, se transformou numa referência teórica indispensável. Com o fim de encontrar as leis que regem a distribuição espacial e a hierarquia dos núcleos urbanos, Christaller tratou de formular uma teoria “com uma validez completamente independente do que a realidade aparenta, mas válida somente pela virtude de sua lógica”. Esta teoria poderia ser então “confrontada com a realidade (para ver) em que parte a realidade corresponde à teoria, em que parte é explicada por ela e em que aspectos a realidade não corresponde com a teoria”.54 De maneira semelhante, anos mais tarde Bunge consideraria que a veracidade ou validez intuitiva de uma teoria não é um critério aceitável para julgá-la, já que isso depende das idéias comumente aceitadas em um momento dado; e defendeu, em troca, que as características das teorias haveriam de ser: claridade, o que se obtém apresentando-as de forma matemática; simplicidade e generalidade, o que supõe minimizar as variáveis e aumentar a informação; e a exatidão.55
A teoria resulta indispensável inclusive para a descrição. Bunge, seguindo a Popper, insiste que toda a descrição é sempre seletiva, supõe eleger fatos significativos. Isto implica que se possuam previamente critérios de classificação, um corpo de idéias e, em definitivo, um sistema teórico, ainda que não esteja explicitado. É sempre a partir de uma teoria que selecionamos os dados a observar entre a multidão de fenômenos que apresenta a realidade.56 Se isto é assim, argumentam os quantitativos, explicitemos nossas teorias, ajustemo-las e façamos delas o ponto de partida do nosso trabalho científico. Somente assim, e não mediante a realização de inventários cada vez mais detalhados, será possível o trabalho científico. Tanto mais quanto o aumento da informação geográfica disponível provoca uma verdadeira explosão da matriz de dados geográficos, e faz ainda mais verdadeiramente impossível a manipulação da informação.57
As teorias, naturalmente, hão de explicar o geral. Os casos únicos não podem ser explicados por somente uma teoria, sinal que exigem comumente todo um conjunto delas. É o que ocorre com “a região” dos geógrafos historicistas, que por definição é única, dada a singular combinação dos fenômenos físicos e humanos que nela se produz. Como não há leis para o único, lembra Schaefer, o que os cientistas fazem, realmente, ante uma situação como esta é isto: “aplicam para cada caso concreto juntamente todas as leis que concernem a aquelas variáveis que consideram mais importantes”.58 No caso da geografia, situações como a do porto de Nova York, ao que havia aludido Hartshorne, são únicas, e para elas não existe nenhuma lei, mas – pergunta Schaefer – “Por que há de existir uma lei para um caso único?59
O caso do porto de Nova York ou de uma região qualquer, não seria um caso “único”, se não “individual”, ou seja, uma combinação particular de variáveis que exigem a utilização de diversas leis gerais. Estas são o objetivo da ciência, as únicas que permitem realizar predições. Encontramos-nos aqui em outro ponto fundamental: “se uma teoria não pode predizer – escreveu Bunge – é que não foi descoberta a regra da realidade”.60 Naturalmente, isto supõe reafirmar outra vez o velho lema positivista (“savoir pour prevoír”) e, no caso da geografia, propor-se novamente o problema do determinismo. Sobre esta questão a posição dos novos geógrafos é radicalmente oposta à dos historicistas. Outra vez Schaefer formulou o tema de forma bem clara: “se o determinismo se toma para significar que em toda a natureza existem leis que não permitem nenhuma exceção, então este é o fundamento comum a todas as ciências. E se o livre arbítrio significa que as decisões humanas não estão determinadas por seus antecendentes (fisiológicos ou sóciopsicológicos), então a vontade não é livre”.61 Enquanto o determinismo com adjetivos – por exemplo, o determinismo geográfico, que atribui a fatores físicos um peso importante na organização das atividades humanas – se trata de uma questão que deve ser objeto de investigação científica. Não é estranho assim, que frente à maneira tradicional de propor o problema do determinismo geográfico pela escola francesa,62, se possa escrever agora que “a negação das teses deterministas pela escola possibilista conduziu, lamentavelmente, ao abandono de grande parte da metodologia científica”.63

NOTAS
43 Tal como se indica na primeira nota de Excepcionalismo en Geografia (SCHAEFER, 1953, Ed. 1974, p. 29), de onde também se cita a outro filósofo do Círculo de Viena, Victor Kraft. Uma breve e emocionada biografia de Schaefer foi escrita por William Bunge (BUNGE, 1979), o qual havia feito uso dos escritos deste autor – incluindo os inéditos – em sua Theoretical Geography (BUNGE, 1962). Desde fins dos anos de 1940, Schaefer ensinava em seus cursos a Lösch, Hoover, Thumen e, sobre tudo a Christaller, com quem tinha contato. Discípulos seus foram W. Warntz e W. Garrison. O diretor do grupo era H. McCarty, que também foi incluído por Bergmann. Ver JOHNSTON, 1979, pp. 50-52. Schaefer morreu em 1953.
44Ver TAAFE, 1979, P. 133.
45 SCHAEFER (1953), Ed. 1974, p. 33.
46 Ver Supra, cap. X, p. 268-269.
47 Sobre as idéias acerca da indução probabilística no século XIX, e concretamente em Cournot, ver NICOLAS-OBADIA, 1978, cap. 1.1, e 1981 Geo-Crítica, n.º 35, 1981. A discussão sobre a possível influência destas idéias em Vidal de la Blache nessa última obra e em LUCKERMANN, 1965.
48 Um exemplo da aceitação desse método por um discípulo de Vidal de la Blache pode ser lido no texto de A. Demangeon, escrito a propósito dos estudos sobre a casa rural: “as investigações sobre esta matéria têm, pois, que proceder geograficamente, país por país. Os meios geográficos são tão diferentes uns dos outros segundo as características do solo e do clima, da agricultura e dos modos de civilização, que não podem ter produzido os mesmos tipos de casa. Somente após a realização de numerosos estudos em muitos países que será o momento de reuni-los e compará-los, a fim de ver se existem leis gerais para a aplicação a este interessante e apaixonante problema de geografia humana” (DEMANGEON: Ensayo de clasificación de las casas rurales, incluindo em (1942), Ed. 1956, p. 148). Ver também o dito Supra, nota 2.
49 BUNGE, 1962, p. 2.
50 HANSON (1958), Ed. 1977, p. 13.
51 Hanson considera que a ciência se encontra situada entre a matemática pura e a experiência sensorial bruta, e que é a tensão conceitual gerada entre estas coordenadas polares de que provém as perplexidades filosóficas da ciência propondo que sua obra navegue entre o formalismo e a o sensorialismo (HANSON, idem, p. 11).
52 CHORLEY-HAGGET (1967), Ed. Parcial, 1971, p. 9.
53 Uma explicação detalhada deste método em HARVEY, 1969, pp. 32-43.
54 CHRISTALLER, 1933, cit. por CAPEL, introdução à obra de F. K. Schaefer, Excepcionalismo en Geografia, Ed. 1974, p. 14 e 15. Questão extraordinariamente importante, a gênese e a interpretação das idéias de Christaller, começou a ser divulgada recentemente por MULLER-WILLE, 1979, que tem mostrado as sutis e importantes diferenças que existem entre Christaller e os precedentes que às vezes se atribuem a sua obra; e por GAMA MENDEZ, 1980; este último tem defendido a relação com o pensamento de Max Weber.
55 BUNGE, 1962, p. 2 e 3;
56 Um embasamento semelhante na antropologia tem sido realizado por JARVIE (1961), e Ed. 1975.
57 Ver sobre isto CHORLEY, HAGGETT, 1967, Ed. Parcial 1971, p. 23.
58 SCHAEFER (1953), Ed. 1973, p. 61.
59 SCHAEFER (1953), Ed. 1974, p. 62.
60 SCHAEFER (1953), Ed. 1974, p. 62.
61 BUNGE, 1962, p. 2.
62 Por parte de L. FEBVRE (1922), ou de autores que o seguem, como TERAN, 1957.
63 DAVIES, 1966, reproduzido em DAVIES, 1972, pp. 31-41.

Fonte: Notas da tradução ao capítulo XII “Neopositivismo y Geografía quantitativa”, de Horacio Capel. Filosofia y ciencia en la geografia contemporânea. Uma introducción a la Geografia. Editora Barcanova. Temas Universitários, Barcelona, 1981.Tradução de André Geraldo Berezuk e Jorge Ulises Guerra Villalobos.
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