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Reflexões sobre o Nordeste e o Rio São Francisco

sexta-feira, fevereiro 15, 2008 7:11:00 PM

Ontem, no dia 14 de fevereiro de 2008, passando os canais de televisão, tive a oportunidade de assistir pela TV Senado, uma interessante audiência pública, a audiência sobre a integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste, ou, como popularmente citam, a transposição do Velho Chico. E entre as diversas personalidades que participaram estavam: o Bispo de Barra/BA Dom Luis Cáppio (aquele que fez greve de fome para se evitar a continuação desse projeto), o Ministro da Integração Nacional Geddel Vieira Lima e responsável pela execução da obra, o Deputado Ciro Gomes, o Arcebispo da Paraíba Dom Aldo Pagotto representando o Comitê Paraibano em Defesa da Integração de Bacias (e contrário à posição de Dom Luis) e outras personalidades influentes.

Desde o princípio, configurou-se o debate como caloroso e polêmico, com discussões ricas e fundamentadas de ambos os lados, dando à questão da transposição das bacias a sua devida natureza, que é a de um tema altamente complexo em uma região muito heterogênea. Sem sombra de dúvidas, para se debater a referente questão, deve-se conhecer previamente tanto as características físicas de cada Estado do Nordeste, assim como a sua história referente à seca e seus aspectos sociais. Mais do que uma discussão de ordem técnica, é uma discussão de ordem social, pois se argumentou exaustivamente se as águas da transposição iriam realmente chegar ao ribeirinho e ao pequeno agricultor, ou seja, ao mais pobre. O que se viu também foi uma extrema desconfiança para com a credibilidade ética do senado, principalmente para com a própria bancada nordestina, justificável após tantas denúncias de corrupção e CPIs que ocorreram no ano passado e que continuam a ocorrer no governo.

Dom Cáppio, expôs a sua argumentação dizendo que outros projetos como a construção de cisternas de quinze mil litros de capacidade para as famílias do nordeste e a perfuração de mais poços artesianos seriam uma saída mais barata e mais eficiente do que a própria integração das bacias, e iria beneficiar, ao invés de doze milhões de habitantes, quarenta e quatro milhões de habitantes. No entanto, no cerne de seu discurso, atacou duramente a credibilidade social do projeto, referindo-se para tal como apenas mais uma obra para consolidar o prestígio e o poder das históricas oligarquias nordestinas. Dom Cáppio, levando à tona a histórica exploração do povo nordestino pelas ricas famílias do Nordeste, desencadeou o furor do Deputado Ciro Gomes, expoente de uma das fortes famílias do interior do Ceará. Mesmo sem o nome ter sido citado pelo Bispo de Barra, Ciro, indignado com as palavras de Cáppio, disse que não trabalhava na referente obra para fins particulares e sim para o bem do povo nordestino.

Esse foi um aspecto fundamental da audiência pública. Seria ingenuidade pensar que as ricas oligarquias nordestinas não irão ganhar nada com a transposição do Rio São Francisco. Vão ganhar, e vão ganhar muito. E Cáppio sabe disso, pois é conhecedor da realidade de sua diocese no interior da Bahia. Se a poderosa aristocracia do nordeste não iria ganhar nada com a obra, porque então justificar a elaboração de um projeto que irá construir mais de setecentos quilômetros de canais artificiais em dois eixos (o norte-sul e o leste-oeste) no qual a água seria bombeada por mais de 26 poderosas bombas, retirando do rio um volume de 26 metros cúbicos de água por segundo? Será que Dom Cáppio fez greve de fome à toa, sem motivo?

Após a exposição de Cáppio, foi a vez do Ministro da Integração Nacional Geddel Vieira Lima. O discurso de Cáppio dotado de sólidos argumentos deixou Geddel numa posição delicada em seu discurso na audiência. A saída de Geddel fora na execução de um discurso em que se referisse mais aos critérios técnicos da obra, explicitando que o rio não sofreria grandes danos com a retirada de 26 metros cúbicos por segundo. E logicamente, afirmou que os ribeirinhos também seriam contemplados com os benefícios dos novos canais e que estes não seriam utilizados somente pelas grandes agroindústrias voltadas ao cultivo de melão e camarão. E também citou como óbvia a presença de grandes empreiteiras na obra, pois uma grande obra só sobrevive com grandes transformadores. Em resumo, o discurso de Geddel centrou-se em dizer que todos sairiam felizes, grandes e pequenos, e que a região do semi-árido nordestino seria alavancada em uma nova era de progresso e prosperidade. Ele, inclusive, citou a construção de cisternas e de mais poços como uma parte integrante do projeto para a sustentabilidade hídrica do nordeste, juntamente com a necessidade da obra.

No entanto, no decorrer da obra, o viés técnico da transposição foi argumentado: será que realmente o bombeamento não iria afetar os aspectos hidrológicos e ecossistêmicos do rio? O presidente do Comitê de Bacia do Rio das Velhas, Minas Gerais, o Dr. Apolo Heringer Lisboa, fez um dos discursos mais veementes sobre os problemas referentes à execução da obra de integração de bacias. Citou que as obras já em execução ao longo do Rio São Francisco retiram dele muito mais do que os 26 metros cúbicos de água por segundo e que isto deveria ser levado em consideração nos estudos hidrológicos. Entretanto, seu discurso ficou mais focado no aspecto social, dizendo que as águas dos canais irão beneficiar as propriedades mais ricas e vão desaguar justamente nos canais com menos problemas hídricos, onde estão, logicamente, os mais ricos. Os mais pobres serão mais uma vez marginalizados. E, citando uma passagem irônica e interessante de seu discurso, citou o indignado Deputado Ciro Gomes como um “ilusionista das palavras”.

Outro fator interessante da audiência foi o discurso da Promotora de Justiça da Bahia, a Dra. Luciana Teixeira que questionava aspectos inconstitucionais do projeto, como a não realização de audiências públicas nas cidades que seriam impactadas pelo projeto (essas foram realizadas somente nas capitais, bem longe das áreas de execução) e o não-respeito pelas áreas indígenas onde os canais passariam. Também citou a dúvida com relação aos resultados e possível credibilidade dos estudos de impacto ambiental do projeto. No entanto, o secretário de infra-estrutura hídrica, o Dr. João Reis Santana Filho, exaustivamente confirmou a viabilidade e credibilidade da obra dizendo que ela não ofereceria risco e dano algum ao São Francisco.

Por último, mas não menos importante, convém destacar o discurso do Arcebispo da Paraíba, Dom Aldo di Cillo Pagotto, que ao contrário de seu colega, Dom Luis Cáppio, é a favor da obra, dizendo sobre a sua fundamental importância para as populações do Estado da Paraíba. A princípio soam estranhas, de dois religiosos do alto clero, opiniões tão diferentes. Mas, devido à própria heterogeneidade física do Nordeste elas passam a ser compreensivas. Dom Aldo Pagotto é arcebispo de um dos Estados mais pobres em termos de potencial hídrico, em especial ao potencial hidrogeológico. A Paraíba é quase constituída predominantemente por substrato cristalino (formações graníticas e gnáissicas), áreas normalmente pobres em vazão hídrica. Ele mesmo citou esse aspecto em seu discurso para o Senado dizendo ainda que a perfuração de poços para a Paraíba é, por isso, inviável. Dessa forma, para o Estado da Paraíba, a execução do projeto é fundamental. Por outro lado, Dom Cáppio, com sua diocese localizada em Barra, no oeste baiano, além de estar localizada às margens do Velho Chico, possui áreas sedimentares terciárias e quaternárias, dotadas teoricamente de maior vazão para a perfuração de poços. É mais uma vez o Nordeste revelando suas características heterogêneas. O Arcebispo da Paraíba, no fim do discurso disse que irá organizar uma manifestação de apoio à transposição na cidade de Monteiro, no interior da Paraíba.

Muitas considerações podem ser feitas mediante tão importante e polêmica audiência pública, englobando os aspectos técnicos, sociais, históricos e políticos. Tecnicamente, a execução da obra ainda é indagada, mais pelas constatações de atos inconstitucionais levantados pela promotora de justiça da Bahia, Luciana Teixeira. No entanto, parece soar como improvável que uma obra que já passou por dois estudos complexos de impacto ambiental apresente ainda elevados riscos ao rio. No entanto, como está se tratando de cifras em torno de milhões de dólares, dos bastidores referentes aos resultados desses estudos tudo tem de ser analisado minuciosamente, mesmo porque um rio tão degradado como o São Francisco não permitirá mais erros técnicos.

Com relação aos aspectos sociais, deve se deixar bem claro que o Rio São Francisco é, acima de tudo, propriedade dos habitantes do Nordeste e de Minas Gerais, e por isso, esses habitantes têm de ser assistidos e beneficiados com a água desse rio. E por isso é louvável e admirável o trabalho e a posição de Dom Luiz Cáppio em defender ardorosamente os interesses dos povos ribeirinhos e das classes mais pobres. Ignorar a ênfase social, deixando-se levar por discursos onde se prioriza somente os interesses dos mais abastados é perpetuar a velha política coronelista de mais de 300 anos no interior nordestino. Aliás, enfatizando o viés histórico, vê-se que a questão da seca e da luta pela água no nordeste foi um dos aspectos mais relembrados de toda a audiência.

Os aspectos políticos referentes ao projeto do Rio São Francisco dariam para escrever um outro texto. O Brasil, influenciado por uma nova onda desenvolvimentista com a implantação do Plano de Aceleração do Crescimento, o PAC, vê avidamente a execução do projeto do São Francisco e o governo federal não mede esforços em acelerar sua implantação. O problema com a obsessão em crescer rapidamente é que quase sempre ficamos cegos a alternativas mais simples de crescimento, tal como enfatiza Cáppio, como a construção de cisternas para famílias. No entanto, os negócios milionários não seguem a cartilha, muitas vezes, do simples e eficaz, mas sim do que é megalômano. No mais, convém ressaltar a grande desconfiança por parte dos discursos contra a transposição com relação ao nível ético e moral do Senado e da Câmara dos Deputados, pois o que se viu na audiência foi uma dúvida para com o verdadeiro objetivo dos nobres pares: o povo ou seus interesses particulares? A indignação de Ciro mostra que essa desconfiança doeu.
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